domingo, 30 de janeiro de 2011

Bojo


E levaram embora o vaso sanitário. Começou a não funcionar direito a descarga, escorrendo água pelo banheiro, rachaduras na base, até que um dia não era mais possível fazer nada. Ele ficou triste, pois o que ia embora no vaso sanitário era boa parte de sua vida . Não que tivesse feito besteiras dignas de comparações fecais. A história não trata disso. 

Fazendo Xixi.
7 anos de idade. O garoto ia no banheiro e notou que na parte interna do vaso sanitário uma pequena mancha se formava. Pensando que fosse alguma sujeira, faz xixi em cima pra ver se sai. Tenta várias vezes e nada.
Quando se é criança qualquer detalhe chama atenção e abre espaço para uma imaginação. Toda vez que ia no banheiro para fins líquidos, só acertava na manchinha do vaso. Mirava lá e ficava apenas observando atentamente, assim como todo garotinho faz quando se dedica a alguma coisa aparentemente fútil - pra quem desaprendeu a ser criança.

Mijando.
Dizem que a hora de urinar é um dos momentos pensativos de um homem. Imagens de alívio e liberdade passando pela cabeça. Mijar é a verdadeira anistia da bexiga.
A não ser que estivesse sozinho em banheiros públicos, o jovem jamais usava mictórios por que não se sentia a vontade. Até que bebeu umas cervejas pela primeira vez - aquilo tinha gosto estranho no início - e sentiu vontade de ir ao banheiro que estava lotado. Dos quatro mictórios apenas um estava livre: justamente o do meio. Tentou esperar, mas não dava. Ficou lá uns dois minutos apenas parado enquanto um rodízio de pessoas querendo eliminar urina acontecia nos mictórios ao lado. Estava tenso até que começou a prestar atenção nos azulejos, na tubulação do banheiro e enfim, tudo fluiu.
Mas para a completa superação do trauma de usar um mictório em um banheiro lotado, começava a tomar medidas interessantes. Começou a prestar atenção nos pequenos buracos que todo mictório tem e tentar acertar neles. Depois de várias cervejas, isso fazia pensar em algumas coisas:
Pensamento Urinário Nº1 : Conseguia acertar perfeitamente os buraquinhos do mictório. Não errava nenhum. Poderia quem sabe, estar revolucionando a obra de arte - já revolucionária - de Duchamp, tentando continuar a destruição de um conceito de arte a partir de um ataque uretral. A urina dissolvendo um paradigma artístico.
Pensamento Urinário Nº2: O livro dos recordes tem algumas marcações bizarras. Mas será que existia alguém no mundo que mijava tão bem feito ele? Acertava todos os buraquinhos em uma perfeição milimétrica. Mesmo entrando pra o Guiness na seção de recordes bizarros, seria o registro de uma superação - uma contribuição prática para o ato humano de urinar dirigido ao sexo masculino.
Pensamento Urinário Nº3: Depois dos exames anti-doping que pegaram Maradona, todo mundo sabe que cannabis sativa deixa vestígios na urina. Se for fazer exame daqueles que precisam mijar em um pote, não fume maconha senão teus pais descobrem.
Pensamento Urinário Nº4 : Pensava na história que ouviu uma vez que dizia que em uma penitenciária um grupo de presos sempre mijavam no mesmo local. Depois de 10 anos, a parede começou a ceder, o que facilitou para fazer um túnel. Mijar realmente é uma ação libertária. 

Urinando.
As mulheres reclamam que todos os homens erram a mira do vaso sanitário. Ele era diferente, pois toda a vida desenvolveu uma mira infalível nos vasos sanitários. Bastava imaginar o local daquela manchinha no vaso sanitário- a nostalgia da infância – que jamais errava o tiro amarelo. De fato, era um Clint Eastwood urinário: antes um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que urinar fora do vaso sanitário. Chegou a um alto grau de maturidade. Não era um homem igual a todos os outros como as mulheres costumam classificar.
Além da questão de ser um cavalheiro apenas pelo seu método de urinar, também se preocupava com o mundo. Nos jornais, agora todos falavam uma palavra apenas: sustentabilidade. Em tudo que você faz deve ser sustentável, diziam as propagandas TV. Pensava o quanto urinar estava envolvido em um projeto de um novo modelo para gestão de recursos hídricos no mundo - bem-aventurados aqueles que urinam no banho. Urinar e não dar a descarga é uma falta de educação sustentável. 

Mas seu vaso sanitário da manchinha foi embora. Se os animais urinam pra demarcar território, ele urinou pra demarcar a vida. Talvez entraria em crise, já estava ficando velho e a coordenação motora ia se esvaindo e poderia ser que um dia o risco de uma incontinência urinária fosse real. A fralda geriátrica marca o eterno retorno em que está imersa a vida humana.