domingo, 22 de setembro de 2013

Al otro lado del rio

O reservado adolescente Heráclito adicionou um novo evento ao seu cotidiano: ir  logo cedo a um rio que passava próximo a cidade de Éfeso e ficar sentado nas margens ou colocar os pés na água e passar horas olhando pros círculos que a correnteza  fazia nos calcanhares.  Vez ou outra algumas crianças viam Heráclito e  começavam a imita-lo colocando e tirando os pés da água. . “Tudo flui” falou quase que automaticamente Heráclito ao apalpar uma grande espinha que vinha nascendo no seu queixo e ver ,em uma mesma cena, a risada das crianças no dando golpes na água, jogando gotas, formando espumas, bolhas e pequenos arco íris na luz do sol.  Heráclito sentiu uma grande alegria junto a uma vontade de ir a outra margem do rio.  Porém, suspirou e lamentou não saber nadar bem pra fazer isso
Indo para casa Heráclito para e vê uma multidão numa praça. E, entrando mais no centro da multidão, percebeu que o centro das atenções era um jovem bonito e bem vestido chamado Parmênides apresentado como filósofo e bajulado por lideranças políticas locais da cidade de Èfeso. Por um momento todos silenciaram e Parmênides começou a contar sobre um manuscrito que estava elaborando: um bocado de histórias sobre um pequeno príncipe que morava sozinho em uma ilha em que apareciam raposas e outros seres. Parmênides usou uma das reflexões desta fábula do principezinho – que desde o início Heráclito achou horrível e de mau gosto -  para falar da sua filosofia sobre a permanência de elementos do cosmos e  soltou a seguinte frase : “ o essencial é invisível aos olhos”. Neste exato momento o impulso crítico de Heráclito ganhou força e ele entrou em um dilema – muito comum nos dias atuais quando jovens vêem opiniões contraditórias nas redes sociais -  discordar ou não discordar?  Vale a pena discutir com esse babaca?. Ao mesmo tempo que Heráclito apertava a espinha no queixo a ponto de estoura-la ele sentia subir uma voz interior – como se um ventríloquo tivesse dado o comando, já estava  dizendo:

“Pelo contrário, não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio. Tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo”

Há mais panelinhas, fofocas e baixarias sobre as disputas entre Parmênides ( o filosófo da essência) e Heráclito ( o filósofo transformação) do que nossa vã filosofia possa acreditar. A famosa frase do rio gerou toda uma fúria por parte de Parmênides. Habituado – na sua essência- a não ser contrariado pelos pais ele viu em Heráclito um oponente que precisava destruir a todo custo. Nem sequer pediu pra Heráclito explicar melhor a sua questão fluvial e foi logo fazendo apostas: “ desafio você a provar isso no próprio rio”.  Heráclito aceitou a proposta.
Com uma multidão acompanhando, os dois chegaram a o rio que passava perto de Éfeso.  Heráclito apresentou seu argumento colocando os pés na água durante duas vezes. Na primeira vez  apenas colocou os pés na água e depois saiu – nesse momento alguns habitantes de Éfeso juram que viram Heráclito andando na superfície do rio, mas não há provas disso. Na segunda vez colocou dinovo os pés na água  e jogou uma folha seca no rio. Por fim, apontou ela sendo levada pela correnteza.  O argumento estava pronto.  
Parmênides estava horrorizado pois não sabia explicar sua ideia outrora tão brilhante de essência diante desta visão da folha ziguezagueando e indo embora na correnteza.  (Pior era o público que entediado com a disputa foi aos poucos esvaziando as margens do rio).  Atacado de fúria Parmênides foi para a hospedaria da cidade,  pensar alguma forma de contrariar a brilhante constatação de Heráclito. Os três seguintes dias foram dedicados as mais variadas e bizarras ações comandadas por Parmênides:

Primeiro dia: Parmênides contratou um certo número de escravos para cavar buracos e encher eles com a água do rio: com a água parada poderia provar a essência das coisas ( além de tentar causar uma epidemia de dengue na cidade).  Mas com o tempo a água dos buracos  batia na terra e virava lama ou evaporava.  Heráclito olhava apenas sorrindo e repetia “ tudo flui”. E repetidas vezes Parmênides deu ordens aos escravos para cavar grandes buracos, chegando mesmo a construir um pequeno lago desviando água do rio.  Parmênides também sugeriu que os escravos fizessem uma pequena ponte de madeira no rio para provar que a ponte era essência e o rio a aparência. Não se sabe se cansados de levar insultos e chicotadas ou se por uma afinidade filosófica com Heráclito os escravos se reuniram e elegeram um líder para dizer a Parmênides: “ não adianta, tudo flui”

Segundo dia: Pobres  animais que se envolvem nas disputas entre dois filósofos!. Principalmente quando um dos filósofos odiava ser contrariado. No segundo dia Parmênides comprou um grande rebanho de bois e cabras e, em seguida, mandou matar todos e retirar o couro dos animais.  Em seguida, encomendou a todos os alfaiates de Èfeso que costurassem a pele dos animais e juntassem umas estacas de forma a fazer um “ depósito” de  água do tamanho de uma piscina dessas que as crianças dos dias atuais usam para se banhar aos domingos. Orgulhoso e crente de que agora o argumento de Heráclito ia ser vencido, Parmênides se despiu e caiu na piscina. Porém após um tempo ao sol o couro dos animais ressecou e as costuras se romperam estourando a água e o filosófo  Parmênides por todos os lados.  “ Tudo flui” disse novamente Heráclito ao ver Parmênides pelado caído em uma mistura de lama e  pedaços de couro que começavam a apodrecer.

Terceiro e último dia:  Tudo aparentava que Parmênides,  após a humilhação do dia anterior, tinha ido embora de Éfeso. Então Heráclito  seguiu sua rotina de ir ao rio molhar os pés e brincar com as crianças. Contudo já próximo ao rio Heráclito pisou em uma pedra e ela afundou. Era um buraco feito pelos escravos de Parmênides. E o pior: estava cheio de esterco de vaca.  Parmênides apareceu sorrindo na parte de cima do buraco e jogou uma corda. Com a habitual calma Heráclito subiu e recebeu as zombarias de Parmênides: “ veja bem, meu argumento está certo: há uma essência e uma aparência, você está sujo de merda, resta escolher se isso é sua essência ou aparência”

  É deveras intrigante imaginar que toda uma disputa filosófica acerca de uma ética de transformação e outra de imanência que dividiu e ainda divide o pensamento humano poder ter sido travada em torno de excrementos de animais. Sujo de bosta, Heráclito ignorou as risadas de Parmênides e seguiu rumo ao rio. Chegando lá colocou os pés na água e foi mais fundo e deixou a correnteza bater sob seu corpo levando os pedaços e porções de merda que estavam no seu corpo.  Em seguida mergulhou a cabeça.  Esse “desbatismo” fecal de Heráclito foi o sinal da derrota de Parmênides. A sensação de que tinha perdido aumentou ainda mais quando crianças que estavam perto do rio se aproximaram e fizeram uma espécie de círculo e dançavam em torno do filosófo da “ essência” . As crianças cantarolavam dizendo que “tudo flui e tudo se transforma”.  Enquanto isso, Heráclito percebeu que já estava fazendo um Sol alaranjado do fim da tarde. No reflexo das águas do rio enxergou a real beleza no fato de tudo ser transitório. Heráclito sentiu algo que até então era indescritível e inexplicável – e continuou sendo por milênios até o século XX quando o escritor Marcel Proust descreveu a sensação de nostalgia e infinitude sentida por um personagem dos seus livros ao comer um bolinho e tomar um gole de chá. Após limpar toda aquela merda, Heráclito mergulhou novamente no rio e dessa vez não foi mais visto. Não se sabe se ele tentou nadar ou se deixou apenas levar pela correnteza.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Meu avô era Santiago.


"Old man look at my life
I'm a lot like you were
Old man look at my life
Twenty four and there's so much more
Live alone in a paradise
That makes me think of two"
                                                                                                    ( Neil Young - Old Man 



Ontem eu vi uma foto do meu avô em uma praia. Por um movimento de câmera a foto acabou registrando apenas ele sozinho na diagonal e , mais afastado e prateado pelo sol, o mar. Mesmo usando um desajeitado calção de banho, o velho mantinha seu olhar característico: distante, imponente e sério. Contudo, eu nunca liguei a imagem daquele senhor a praia, nem tampouco ao mar. O habitat do velho era o mato adentro, para além das cercas,  sol, pó,poeira e ventania. Mas tal qual a bravura de um Santiago diante do grande marlim azul, o velho destrinchava e feria suas mãos, misturava e rasgava um pequeno e seco pedaço de terra. Boa parte dessa terra ficava em uma estrada que ,quando era "ano" de chuvas, transformava-se em rio. Mas mesmo com Sol e chuva na sua estrada, o meu avô estava cultivando e tentando retirar algo daquele solo.  Não o fazia por necessidade, mas por alguma espécie de paixão pela terra. “Mesmo sem pegar nenhum peixe, o velho pescador Santiago amava tanto o mar que o chamava como uma mulher, la mer,  que é o nome em espanhol que o chamam quando realmente lhe querem bem”. Mesmo quase cultivando em cima de rochas, o velho insistia em capinar, arar e depois plantar algumas sementes pequenas de milho ou feijão. Chegava uma época que era impossível querer plantar algo se não tivesse alguma chuva. Como um grande marlim despedaçado por tubarões a terra jazia despedaçada pela seca. Mas o que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé? Mesmo quando não conseguia plantar e fazer  crescer algo, o velho ficava olhando para o horizonte e, quieto, aceitava seu destino. O sol batia na cabeça do meu avô que ,ao mesmo tempo que sustentava um grande chapéu, servia como apoio para sonhos e pensamentos que mantinham uma inabalável confiança na vida.  
Quase tudo o que nele existia era velho, quieto e comedido, com exceção de sua ternura. Talvez durante uma fase mais jovem de sua vida o meu avô queria ser um grande herói das estradas. Viajou e morou para locais distantes para trabalhar em ofícios diferentes daquilo que gostava. Subiu novas montanhas tentou diamantes procurar e sofreu por morar em lugares que eram hostis a pessoas de sua origem. Ficou desnorteado, como é comum no seu tempo. Mas mesmo vivendo assim ele não esqueceu de amar, e pelos problemas e dores descobriu o poder da alegria.  Penso que foi assim que meu avô aprendeu a ter uma ternura simples e direta em meio a uma postura que ,por vezes, aparentava ser de rigidez e hostilidade que só os velhos “ brutos” tem. Apesar de carregar uma grande faca na cintura e de sua camisa e seu ar forte de caçador o velho gostava de dar risadas altas enquanto brincava com filhotes de gatos. Saindo da postura de “homem forte” o velho não abria mão e nem tinha vergonha de abraçar e beijar os netos. Até mesmo odiando futebol, o velho adorava ficar ao lado dos pequenos na hora dos jogos e ria alto ao ouvir os guris chamando palavrões que mal sabiam o que significava. Diante dos netos parecia que meu avô lembrava o riso que tinha e que, ás vezes, esquecia entre os dentes.  
Nas madrugadas, bastava um gosto de sol na boca da noite para que o velho acordasse e colocasse o pé na estrada para ir pra sua pequena terra, o seu “roçado”.  Foi ali que, por mais que afirmar isso seja temporalmente absurdo, eu vi o velho me dar adeus anos antes dele realmente se despedir. Ao longe a  cena: parado no meio do roçado, o sol na cabeça, o velho para de mexer a terra durante alguns segundos e de longe penso ver -  se não me enganou a  miopia ou reflexo solar – mãos calosas soltando as ferramentas e me dando um aceno de despedida. As mãos que dizem adeus são pássaros que vão morrendo lentamente, Quintana acertou.  Talvez o velho queria ficar guardado dessa forma na minha memória: um simples agricultor que não se esvai diante dos embates e das vicissitudes da vida, que se conformava com os triunfos e derrotas de forma sábia e tranqüila. Meu avô era, antes de tudo, um forte.


Aviso aos navegantes: quando morremos nos desintegramos espalhamos um big bang de lembranças, situações na memória das pessoas que nos cercavam. Meu Mestre e avô está "disperso" em várias passagens musicais que flutuam ao redor do texto. 

quarta-feira, 13 de março de 2013

Santa Maria das Umburanas



"Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta (...) 
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida." ( Milton Nascimento)

Lembro de um dos melhores episódios da série Cosmos em que o astrônomo Carl Sagan fala que “o universo não parece ser nem bondoso nem hostil, mas meramente indiferente a criaturas como nós”.  Essa frase me faz pensar como a imensidão calada e ao mesmo tempo barulhenta de um céu noturno não deixa de ser bela pelo fato de não existir ninguém que a criou ou administra. Mesmo acreditando nessas coisas eu adorava fingir que era católico quando conversava com minha avó. Fingia não era por maldade e sim por certo respeito. Dona Maria era uma daquelas fervorosas nonas católicas que participava de tudo na Igreja e até arriscava rezar e cantar umas músicas em latim. Era impressionante como ela sabia tudo dos santos. Desde criança eu ficava encantado quando Maria me contava as histórias dos mártires com suas batalhas, dragões, lanças, sacrifícios, flechas, perseguições, milagres. Adorava também ouvir os santos nomes e seus lugares de origem: existe algo que soe mais bonito que pronunciar “Jorge da Capadócia”?  Ou quão bonita podia ser Nossa Senhora de Fátima em seu manto branco aparecendo para os três pastores em Portugal? E aquela imagem de São Francisco de Assis com os animais que tinha naquele quadro que Maria uma vez me presenteou?
Não satisfeita em saber tudo sobre as santidades Dona Maria também era disposta em organizar grupos de oração, desde os corais que cantavam os hinos de louvor até o dedicado zelo na ornamentação da igreja.  Além de tudo era uma pessoa que conseguia combinar uma simplicidade franciscana com uma disposição vicentina de mover montanhas para ajudar as pessoas.    
Não precisamos  fazer teorias da conspiração para explicar por que o papa Bento XVI abdicou do cargo. O motivo é óbvio.  Agora que Dona Maria não está mais viva e a igreja católica  perde um dos seus principais pilares. Talvez daqui a uns 200 anos e mais uns 3 ou 4 papas alguém vai atribuir alguns milagres a Dona Maria e ,assim , iniciar seu processo de beatificação e canonização.
Por enquanto, continuo acreditando que o céu e o universo continuam se movendo indiferentes às nossas vidas. Mas às vezes acho que alguém lá em cima deve estar trabalhando bem na ornamentação das estrelas e das nuvens.  Desde que Dona Maria se foi dá pra notar que o céu está muito mais bonito.  



sexta-feira, 1 de março de 2013

40 GB.



 Meu vizinho anda muito triste.  Ainda não há dados oficiais, mas ao que parece, este morador do meu bairro perdeu os 40 GB de pornografia que tinha em seu computador.  Se no livro Moby Dick todos temem a cor branca da ameaçadora baleia gigante aqui, o medo teve lugar na matiz azul. Tudo começou com a aparição da tela celeste que vez ou outra vem para assombrar os computadores. Após reiniciar a máquina tudo parecia normal mas meu vizinho percebeu que precisava salvar todo o seu acervo de putarias.
Em missão digna de um Noé da pornografia meu vizinho segue madrugada adentro atrás de todo tipo de dispositivo móvel para salvar o que fosse possível antes do Dilúvio profetizado na temida Tela Cérulea. Era uma corrida atrás de pendrives, CDs/DVDs virgens até mesmo disquetes. Se fosse preciso, mataria alguém por um HD externo: uma verdadeira Arca que salvaria todos aqueles registros de vídeos e imagens de casais humanos. Aposto que meu vizinho havia feito downloads de todas as categorias possíveis que todo bom pai de família – que vai às quartas e domingos com esposa e filhos para igreja – aprecia acessar em sites pornô.  
E ficou tudo Azul dinovo e dessa vez o computador não mais voltou a funcionar. Não dormiu nada o resto da noite e logo cedo levou a CPU para uma oficina de informática. Dentro de dois dias veio a informação de que havia dado perda total no disco rígido. Neste momento, não se sabe bem o que aconteceu dentro de sua cabeça. Talvez imaginou –se sobrevoando uma enorme planície azul em que milhares de casais humanos acasalavam de várias formas e posições e, ao mesmo tempo, davam adeus ao meu vizinho.  
Passou o resto da semana perdido em melancolia. Algo como uma nostalgia masturbatória bateu nele. Apontava para nossos amigos na rua e dizia “essa atual geração de jovens possui matéria prima pra se divertir fácil demais, bom era nos meus tempos em que ficava escondido espiava as primas, tias, amigas da irmã ou senão roubava revistas das bancas”. Certa vez José Saramago disse que “é ainda possível chorar sobre as páginas de um livro, mas não se pode derramar lágrimas sobre um disco rígido”. Infelizmente, o grande escritor português não está vivo para ver meu vizinho vertendo lágrimas sobre a peça do HardDisk  que antes abrigava toda a sua diversão contra a monotonia diária.