sexta-feira, 24 de maio de 2013

Meu avô era Santiago.


"Old man look at my life
I'm a lot like you were
Old man look at my life
Twenty four and there's so much more
Live alone in a paradise
That makes me think of two"
                                                                                                    ( Neil Young - Old Man 



Ontem eu vi uma foto do meu avô em uma praia. Por um movimento de câmera a foto acabou registrando apenas ele sozinho na diagonal e , mais afastado e prateado pelo sol, o mar. Mesmo usando um desajeitado calção de banho, o velho mantinha seu olhar característico: distante, imponente e sério. Contudo, eu nunca liguei a imagem daquele senhor a praia, nem tampouco ao mar. O habitat do velho era o mato adentro, para além das cercas,  sol, pó,poeira e ventania. Mas tal qual a bravura de um Santiago diante do grande marlim azul, o velho destrinchava e feria suas mãos, misturava e rasgava um pequeno e seco pedaço de terra. Boa parte dessa terra ficava em uma estrada que ,quando era "ano" de chuvas, transformava-se em rio. Mas mesmo com Sol e chuva na sua estrada, o meu avô estava cultivando e tentando retirar algo daquele solo.  Não o fazia por necessidade, mas por alguma espécie de paixão pela terra. “Mesmo sem pegar nenhum peixe, o velho pescador Santiago amava tanto o mar que o chamava como uma mulher, la mer,  que é o nome em espanhol que o chamam quando realmente lhe querem bem”. Mesmo quase cultivando em cima de rochas, o velho insistia em capinar, arar e depois plantar algumas sementes pequenas de milho ou feijão. Chegava uma época que era impossível querer plantar algo se não tivesse alguma chuva. Como um grande marlim despedaçado por tubarões a terra jazia despedaçada pela seca. Mas o que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé? Mesmo quando não conseguia plantar e fazer  crescer algo, o velho ficava olhando para o horizonte e, quieto, aceitava seu destino. O sol batia na cabeça do meu avô que ,ao mesmo tempo que sustentava um grande chapéu, servia como apoio para sonhos e pensamentos que mantinham uma inabalável confiança na vida.  
Quase tudo o que nele existia era velho, quieto e comedido, com exceção de sua ternura. Talvez durante uma fase mais jovem de sua vida o meu avô queria ser um grande herói das estradas. Viajou e morou para locais distantes para trabalhar em ofícios diferentes daquilo que gostava. Subiu novas montanhas tentou diamantes procurar e sofreu por morar em lugares que eram hostis a pessoas de sua origem. Ficou desnorteado, como é comum no seu tempo. Mas mesmo vivendo assim ele não esqueceu de amar, e pelos problemas e dores descobriu o poder da alegria.  Penso que foi assim que meu avô aprendeu a ter uma ternura simples e direta em meio a uma postura que ,por vezes, aparentava ser de rigidez e hostilidade que só os velhos “ brutos” tem. Apesar de carregar uma grande faca na cintura e de sua camisa e seu ar forte de caçador o velho gostava de dar risadas altas enquanto brincava com filhotes de gatos. Saindo da postura de “homem forte” o velho não abria mão e nem tinha vergonha de abraçar e beijar os netos. Até mesmo odiando futebol, o velho adorava ficar ao lado dos pequenos na hora dos jogos e ria alto ao ouvir os guris chamando palavrões que mal sabiam o que significava. Diante dos netos parecia que meu avô lembrava o riso que tinha e que, ás vezes, esquecia entre os dentes.  
Nas madrugadas, bastava um gosto de sol na boca da noite para que o velho acordasse e colocasse o pé na estrada para ir pra sua pequena terra, o seu “roçado”.  Foi ali que, por mais que afirmar isso seja temporalmente absurdo, eu vi o velho me dar adeus anos antes dele realmente se despedir. Ao longe a  cena: parado no meio do roçado, o sol na cabeça, o velho para de mexer a terra durante alguns segundos e de longe penso ver -  se não me enganou a  miopia ou reflexo solar – mãos calosas soltando as ferramentas e me dando um aceno de despedida. As mãos que dizem adeus são pássaros que vão morrendo lentamente, Quintana acertou.  Talvez o velho queria ficar guardado dessa forma na minha memória: um simples agricultor que não se esvai diante dos embates e das vicissitudes da vida, que se conformava com os triunfos e derrotas de forma sábia e tranqüila. Meu avô era, antes de tudo, um forte.


Aviso aos navegantes: quando morremos nos desintegramos espalhamos um big bang de lembranças, situações na memória das pessoas que nos cercavam. Meu Mestre e avô está "disperso" em várias passagens musicais que flutuam ao redor do texto.