terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cronograma de uma faxina

(...) que tudo quanto contemplas mudará dentro de um instante e não mais existirá. Pensa em quantas mudanças já assististe. O cosmos é mutação; a vida, opinião.

( Marco Aurélio- Meditações) 




09:00 – Acordar, fazer café, preparar sabão, vassouras, panos, desinfetantes e luvas. Rasgar camisas velhas e usar também como pano de chão. 
10:00 – Limpando os quartos, tirar poeira das janelas, varrer, colocar produtos para deixar o chão brilhante.
11:30 – A faxina está adiantada. Já avançou nos 2 quartos do apartamento, tirou a poeira dos quadros de Charles Chaplin, retirou as manchas na moldura do quadro de Jesus – que mexe os olhos caso você mude de lado ao observa-lo.  Os CDs que ficam empilhados devem ser limpos um por um. 
13:30 – Saída para almoço. Como não fez o almoço em casa ficou mais fácil para limpar a cozinha. Deslizar as esponjas e terminar de lavar umas canecas e pratos que sobraram do jantar de ontem.
14:30 – Com a limpeza do banheiro pode-se dizer que a faxina está bastante adiantada no cronograma. Produtos para colocar no pano de chão, sprays de fragrância forte, naftalinas, usar água do chuveiro para encher o balde, molhar o pano. Passar o rodo. Usar luvas para limpar o vaso sanitário. O principal é esconder o cheiro que as pessoas produzem quando vão ao banheiro.
15:30 -   Falta apenas 1 quarto. Nem toda faxina que se faz na casa tem o objetivo limpar esse quarto.  É o quarto das tralhas, dos restos, das nuvens de poeira e seus fiéis guardiães: os cupins e baratas. As visitas da casa não vão pra esse quarto
15:40 – Começa retirando os livros de uma velha prateleira. Livros de primeiros socorros antigos. Parecem ter sido feitos entre a década de 1960 e 1970.  No meio do livro há  fotos de pessoas desmaiadas, picadas por cobras, insetos, com  queimaduras e fraturas. Fica a pergunta: como será que estão essas pessoas hoje? Como elas se sentem por seus ferimentos serem considerados exemplares? Elas estão mortas ou vivas? No fim do livro tem um aviso para cuidados em caso de uma bomba atômica estourar. O livro dá poucas esperanças . Apenas sugere  que, caso você sobreviva,  deve usar roupas brancas pra evitar a radiação.  
15:45 – Achou uma caixa com uma coleção de livros chamada de “ Manual de convivência familiar”. Os livros tinham pequenas aranhas amassadas entre uma das páginas que falavam como deve ser uma “ boa esposa, um bom filho, um bom marido”. Pensou se era melhor jogar fora aqueles livros ou se era melhor manter em casa empoeirando e sendo comido por traças. “Melhor essas ideias antigas mofando aqui em casa do que perambulando por ai” pensou. Mas ainda dava pra salvar um dos livros com receitas de tortas e bolos : independente dos valores familiares de quem fosse manipular o açúcar, leite e ovos e colocar no forno para assar ,
15:50 -  Achou suas antigas agendas. Pequenas anotações feitas em 2003, 1998, 2006, 2004 mostravam seus compromissos e tarefas para resolver naqueles dias que agora pareciam muito distantes. O “dever de casa” de matemática da quarta série no qual quase não conseguia fazer. Chorou muito por não saber fazer uma soma junto com uma duas divisões e uma multiplicação. Na agenda de 2004 tinha as assinaturas coloridas de algumas amigas. Em outras páginas das agendinhas  anotou um número e não colocou o nome. Não se sabe mais pra que e nem pra quem era aquele número.  Em 2011, folheou 10 dias da agenda do mês de setembro e viu que estava com um prazo pra cumprir. Anotava para não esquecer todo dia o nome do trabalho da universidade e no fim do mês, não conseguiu terminar a tempo. Ou melhor, terminou, mas ficou faltando algumas partes. Mas tudo correu bem.
16:00 – Achou em uma caixa de sapatos uma pilha de papéis. Um, que era mais largo, era o cardiograma de uma tia que faleceu há dois anos. 14 de outubro de 1999, quatro da tarde, dizia nos registros do exame. As curvas dos batimentos cardíacos subiam e desciam. O que se passava naquele coração para fazer com que fossem desenhadas as oscilações no papel quadriculado?
16:10 – Mas afinal de contas era uma caixa de sapatos ou um mausoléu coletivo? Embaixo do papelão havia algumas fotos de obituários. Interessante como são editadas as fotografias comuns das pessoas depois que elas morrem. Naquela foto de um amigo em frente a uma cachoeira, recortaram o rosto dele, colocaram em um papel de parede de nuvens e pôr-do-sol e por fim, colocaram a data e horário da missa de sétimo dia. Quando você morrer vão editar aquela sua foto na praia, vão esticar ou diminuir o seu sorriso e enquadrá-lo em um fundo de nuvens. Nada escapa a esse destino.

16:10 -  Contas de luz, extratos bancários apagados, cupons fiscais. 04 de outubro de 2006, tinha aberto a primeira conta bancária fazia menos de 1 mês e às 18h foi a um shopping conferir se tinha dinheiro. Tinha pouco, mas até que deu pra ir ao cinema e assistir um filme. Não dá pra ver que filme era, pois o ticket estava apagado.  Já o extrato da conta bancária no dia 19 de maio de 2010 trazia um cenário financeiro mais esperançoso do que em 2006. Mas havia  tinha outros gastos e preocupações. Comprou um DVD de uma banda pra presentear uma amiga nesse dia. Lembrou que estava em dúvida se o que sentia por ela era amizade ou algo diferente. Resolveu permanecer como amigos. Mas o valor baixo da conta de luz de julho de 2010 provava que algo diferente aconteceu na relação entre ele e sua amiga. Os dois viajaram todo aquele mês juntos e ele não teve tempo de produzir kilowhats em casa e nem de juntar tristezas naquele mês.
16:15 – Achou as caixas com presentes e cartas de namoradas, ex-namoradas, ficantes e outras espécies que habitam a fauna e flora dos corações, nervos e lembranças. Viu uns pacotes vazios de camisinha espalhados e achou difícil lembrar de como e quando tinha feito toda aquela diversão.  Escavou e leu as cartas. Não se sabe ainda se e nem quando o amor um dia acaba ou começa.  Mas jamais se duvidará de sua capacidade de dar e retirar sentido das coisas mais banais. Um saboroso lixo que serve para traçar trincheiras onde guerreiam colagens de revistas, trechos de músicas que se adaptavam ao casal, pedras achadas na rua, ursinhos, colares, ingressos de shows, origamis, papéis de hambúrguer de uma rede de fast food, tampas de garrafa, rolhas de vinho e botões de camisa.  Muitos momentos.
16:30 – As baratas, traças e cupins que estavam esquecidos saem de uns buracos entre as paredes e os livros. Não se sabe se pelo cheiro de mofo ou pelo peso das lembranças a faxina foi suspensa por tempo indeterminado.

                    
                                                                    ***
É no retalho, na aposta, a incompletude, os “quases”, na oscilação e nas probabilidades que a vida é costurada.   Infelizmente viajar no tempo não é como nos filmes de ficção.  Nós não pegamos um carro e escolhemos a data, nem temos como amigo um cientista excêntrico e dedicado a construir uma máquina com todas aquelas luzes e barulhos para ir ao passado ou ao futuro. Jamais um cavaleiro medieval irá aparecer na porta de nossa casa. Também é pouco provável que um andróide venha do futuro para nos salvar ou para iniciar uma guerra que irá dizimar mais da metade da humanidade. Basta uma lembrança e o efeito silencioso de algo escrito numa agenda, uma foto ou um bilhetinho de 8, 10 anos atrás para nos destruir ou vir a nos salvar de nós mesmos.