quarta-feira, 2 de abril de 2014

Chega de Saudade ®

     É com grande orgulho que uma coalizão internacional de cientistas anunciou a  invenção de uma máquina de teletransporte voltada exclusivamente para pessoas que estejam sentindo saudade.  O mecanismo consiste em uma poltrona em que o “ teletransportante” senta e deixa seu corpo ser conectado por eletrodos que, por sua vez, são programados para detectar os impulsos elétricos e neurotransmissores que o cérebro emite quando um ser humano sente saudades. Caso a máquina detectar ondas cerebrais compatíveis com o sentimento de saudade, é acionado a complicada aceleração de átomos que gera energia para a transferência direta da matéria do corpo para qualquer local do mundo em um tempo de no máximo duas horas. “Basta apenas sentir saudade de alguém e que próximo ao local que esse alguém esteja tenha uma subestação para finalizar o teletransporte” declarou um dos pesquisadores da equipe que criou a máquina.

    Dentro dessa nova era dos deslocamentos humanos alguns novos problemas se avizinham. Cientistas, políticos e lingüistas portugueses rapidamente articularam uma campanha para patentear o nome da máquina, alegando que a palavra  “saudade” seria exclusividade do idioma lusófono. Em um longo manifesto contendo  inúmeras citações dos poetas Camões e Fernando Pessoa,  composições de Fado e frases dos navegantes do século XVI, os lusitanos defendiam um suposto privilégio da língua portuguesa de ter um verbete específico para descrever os sentimentos de melancolia que tomam que tomam o ser humano ao sentir falta de alguém ou de algo que está distante. Desviando das questões de uma grave crise econômica que atravessava o seu país, o presidente português exaltava a volta de Portugal ao seu “lugar” de vanguarda das grandes viagens de descoberta da humanidade, agora não mais em naus e caravelas, mas nas poltronas do teletransporte.  Por sua vez, alguns artistas do Brasil tentaram elaborar seu próprio “ manifesto da saudade” alegando que esta palavra teve seu significado bastante influenciado pela cultura musical brasileira. Os brasileiros exigem que, ao menos, sejam tocadas os clássicos da bossa nova como música ambiente nos compartimentos da agora chamada” Máquina da Saudade” .  Nessas disputas não foram ouvidas as ambições políticas, culturais e nem opiniões dos representantes dos países lusófonos da África e Ásia.  Na verdade, esses continentes ganharam o centro das discussões  quando ministros e embaixadores de alguns Estados europeus  declararam preocupações quanto a  possibilidade de  quando a “Máquina da Saudade “  fosse popularizada, gerasse uma  imigração em massa - via teletransporte – para a Europa de parentes dos  cidadãos descendentes de  africanos e asiáticos. Os EUA também declararam algo parecido ao temer uma invasão de mexicanos e “outras espécies de latinos” nas palavras de um senador texano.  Os parlamentares destes países prometeram  propor leis e estatutos para controlar a saudade dos imigrantes e de seus familiares e, assim, manter a paz e a ordem pública.
   Setores das classes empresariais das grandes multinacionais levantaram as possibilidades do uso comercial da Máquina da Saudade como uma forma de transporte que iria evitar gastos de dinheiro e tempo com horas e horas de escalas e vôos dos representantes comerciais . Contudo,  como já foi dito, a máquina apenas funcionava com neurotransmissores específicos da “ saudade”: os empresários, acostumados a vida dinâmica de várias viagens, reuniões e compromissos em diferentes países pouco se importavam em sentir saudades e se as sentiam, era bem longe das viagens de negócio e das reuniões nas salas das empresas que estavam as pessoas que lhe faziam falta. ( Empresas de transporte aéreo, assustadas com a possibilidade de perder passageiros e até mesmo sua função, lançaram promoções que em outros tempos soariam irreais devido ao preço baixo das passagens). Uma conhecida multinacional do ramo farmacêutico lançou investimentos de pesquisa para que cientistas isolassem os transmissores químicos que permitem ao cérebro humano sentir saudade e assim, fazer pílula ou até mesmo uma injeção para viabilizar as viagens dos homens de negócio na Máquina da Saudade.  A “aspirina da saudade” iria se juntar as já conhecidas drogas , lícitas e ilícitas, para dormir,  manter-se acordado, acalmar e controlar ansiedade, controlar o apetite e outras disfunções do corpo humano submetido a uma rotina de viagens e compromissos que ultrapassam as 24 horas.  
   Debates filosóficos e teológicos foram mobilizados pelas possibilidades da “Máquina da Saudade”. Sociólogos e movimentos sociais preocupados com as transformações nas relações sociais causadas pela nova invenção  começaram a denunciar os perigos de uma “ditadura da saudade” para se encaixar nos padrões definidos pela Máquina.  Nos bares e restaurantes, bêbados e poetas clamavam versos aos sentimentos de saudade, faziam piadas  e se questionavam se aos domingos  - dia maior do tédio e do carrossel de lembranças mais forte – haveria um congestionamento e filas infinitas para utilizar as máquinas.  Também aos domingos os padres falavam suas preocupações e faziam reinterpretações da bíblia para adaptar os dogmas da Igreja Católica de acordo com as cartas e declarações do Papa sobre a Máquina da Saudade.  Alguns fiéis mais exaltados falavam que esta máquina era uma tentação e um sinal do Fim do Mundo:  era nada mais que o arrebatamento de pessoas profetizado no livro de Apocalipse. Os recém-casados, já estavam questionando sua fidelidade ao matrimônio, jurada diante de seus cônjuges e a Deus, caso pudessem usar discretamente a Máquina para rever seus namorados e namoradas do passado que ainda tinham saudade.  As cartomantes pensavam em como mudar suas propagandas nos jornais: falar que “ traz a pessoa amada em três dias” não faria mais sentido após a invenção da Máquina da Saudade.  Aqueles que sentiam  a mais dura das saudades - a da morte - enchiam os tinham esperança de que a Máquina fosse um dia aperfeiçoada para que pudessem rever os parentes mortos que tanto eles guardam nas suas memórias.   Cogitava-se também a capacidade da Máquina teletransportar partes de si distribuindo-se em vários locais com as diferentes pessoas que sentiam saudade. “A cabeça estaria no bar com os amigos, o corpo com as amantes, e talvez um pedaço da perna para os filhos”, Alguns, não satisfeitos em matar a saudade de pessoas, queriam saber se a Máquina também possibilitaria viajar no tempo e reviver os momentos das suas infâncias que deixaram saudades. Será que a Máquina da Saudade resolveria a eterna fábrica de insatisfações humanas de desejar incessante e de imediato coisas que não vai poder alcançar?

     As últimas notícias que temos falam de conflitos, protestos e resistências por parte de jovens de vários países a se cadastrar nos programas governamentais da Máquina da Saudade.  Eles alegam que a Máquina  vai fazer com que se perca a magia dos encontros e dos laços sentimentais entre os seres humanos. Preferem utilizar  os meios de comunicação comuns como a internet, telefone e videoconferências para expressar sua saudade. Alguns adolescentes até resolveram radicalizar a luta e aboliram até mesmo os celulares das suas estratégias de saudade. Montaram grupos de resgate de poesias e livros – um neo romantismo anti-teletransporte -  e enviam apenas cartões postais, telegramas, bilhetes e cartas as pessoas que lhe sentem falta. Assim “pode-se aproveitar mais intensamente os efeitos alucinógenos da saudade”; diz uma jovem francesa de 16 anos - mas vestida como uma nobre do século XV - que aboliu o celular e redes sociais da sua vida e pretende passar o próximo ano apenas visitando  amigos de infância que não vê há muito tempo. Um movimento mais violento são as ameaças de grupos terroristas de explodir bombas e seqüestrar cientistas que estejam envolvidos nos projetos da Máquina da Saudade.   Os serviços de inteligência de vários países investigam se esses terroristas estão sendo financiados diretamente pelas empresas do setor fonográfico que temem que a Máquina torne obsoletas as vendas no mercado de músicas. Como compor canções e emplacar sucessos de amor em um mundo que não há mais a saudade?