domingo, 30 de outubro de 2011

O morcego (1)

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto

- Augusto dos Anjos


Não é apenas a cama que conecta o sono e o sexo: a insônia é a impotência sonífera. O comprimido do calmante é a pílula azul do insône. Para dormir precisamos pensar em algo, mas também não dormimos se pensar demais. Pra muitos dormir não é nada fácil, pois precisa de um ambiente propício, sem barulho (ou com barulho de chuva), TV ligada, música, roupas, luminosidade, tranquilidade. A verdade é que a fantasia não é monopólio do sexo.

A catalepsia e o fim das diferenças de classe social.

Tinha uma velha senhora no bairro que morei na infância que dizia só se consegue dormir plenamente quanto não se tem nenhuma dívida - moral ou financeira - com algo ou alguém.  Mesmo sem nenhuma destas pendências, o jovenzinho V.K.M estava numa fase que não conseguia dormir de forma alguma.  A concentração na escola ia mal. Viajando em pensamentos na sala de aula, piscava os pesados olhos, ia ao banheiro, molhava o rosto mas nada reanimava. Na aula de história pouco ouvia os professores falando de pobreza, desemprego, falta de moradia e etc. já que isso estava tão distante de sua vida quanto à voz dos professores na sua cansada mente.
Quanto ao seu nome, o K. junto ao M. não era um simples encontro de sobrenomes: significava que era muito, muito rico e não tinha motivos. O K. vinha de minha mãe - descendente de família tradicional sempre que seu avô sempre frizava que tinham vindo da Europa e que tinham ancestrais medievais nobres, o que se poderia ver nos brasões das antigas jóias da família. O M. era do pai, um desses que começou com pequenas vendas e conseguiu crescer financeiramente, justo aquela já conhecida história de vida de superação que as revistas e palestras anunciam e pedem para seguirmos o exemplo.
Tudo começou uma certa manhã que V.K.M,  não estava acordando de sonhos intranqüilos porque não conseguia fazer algo que é pré-requisito para ser um sonhador. Ficou pensando em família, escola, seus esportes, viagens de natal, negócios da empresa do pai, dinheiro, cartões, ai passava pra família, suas tias amigas de condessas e primeiras damas. Chegou um momento em que ficou simplesmente esperando a passagem do status acordado para dormindo. Será que era amor? Algum primeiro acidente amoroso na sua vida? Não era fácil saber porque V.K. na época não nos contou nada e nem contava nada a sua família. Se trancava no quarto à noite e ficava esperando o dia amanhecer. Pensava apenas em dormir, mas não conseguia dormir. Por volta dos 12 ou 13 anos, V.K descobriria que dormimos a vida inteira mas que as pessoas morrem sem aprender a dormir.
Chegava em casa, comia algo e já via a hora avançada: mais um pouco pra começar o horário oficial de insônia. Tentou colocar alguma música pra descansar, mas nada. Comprou disquinhos que reproduziam o som de chuva que também não fizeram efeito. Deitou na cama, enrolou-se em uns cobertores e começou a pensar em algo que o fizesse dormir. As vezes, antes de dormir fazemos um inventário do que foi o dia. Foi aos cadernos da escola, pensou um pouco, folheou os livros, viu as imagens :

-“ E se eu fosse um mendigo?”

Começou a pensar. Dormiria na rua, enrolado em cobertores em uma solitária noite até que uma sensação de calma o invadiu e ele dormiu profundamente...
Dizem que o jovem Sidarta Gautama, o Buda, viveu até certa idade da sua vida foi privado pela sua rica família de todo o sofrimento mundano. Seu pai não deixava o filho sair do palácio para que ele não visse os moribundos, doentes e miseráveis das vilas e povoados próximos. Quando ele já mais velho sai e começa a ver os sofrimentos do mundo isso o angústia e daí começa seu caminho para a iluminação. Mais ou menos isso aconteceu com V.K.M. Sua projeção imaginária  pra dormir colocava de ponta- cabeça qualquer ato heróico de Robin Hood: se imaginava como pobretão, sem ter onde morar e dormia como aquelas pedras que não sabemos como e nem há quantos milênios estão no topo das montanhas.
No dia seguinte, a vida ganhara novo sentido. Nem se fosse a sua primeira vez na cama sem ser apenas pra dormir ficaria tão alegre. Ficava horas e horas na escola esperando anoitecer pra chegar em casa e realizar sua fantasia. Diferente daquele garoto mais bonito da escola que as meninas amavam mas que quando a mãe e a irmã saiam de casa, ficava usando os vestidos dela, V.K.M achava que tinha fantasias mais interessantes pra se pensar. Quem ele seria hoje a noite? Um mendigo debaixo da ponte? Ou fixaria o corpo e mente na beira de uma estrada isolada? No frio, talvez na neve? Ou no calor, deitado nas areias da praia, de um lado as ondas batendo perto e do outro os carros passando ao lado na avenida?  
Um dia pensou uma situação ótima antes de dormir: era um mendigo, que dormia perto de sua escola, acampado em uns papelões apoiado em pedras e com alguns cobertores por cima. No frio matutino , via seus pais passeando com seu cachorro e suas frases ressoando nos ares:  “ filho, você vive bem, hoje, mas seu pai trabalhou e a vida é dura” ; “ sua vida é muito boa, não reclame de nada” ; “ filho, tomou banho? Levou o lanche? Escovou os dentes? Está com febre? Tá precisando de dinheiro? Quanto?”. Depois via seus amigos da escola passando no ônibus,  falando alto e rindo de qualquer coisa.Viu algumas garotas da escola que sorriam. Sua irmã sorria bastante e acenava de longe, sendo divertida do jeito que só uma criança sabe fazer indo pros primeiros dias de aula. 
No seu sono toda e qualquer luta de classes se apaziguava tranquilamente ,e assim, a cura da insônia tinha sua sentença perpétua.