quarta-feira, 31 de outubro de 2012

1 minuto na liturgia



 Era um rapaz muito concentrado na sua dominical e reconfortante atividade cristã católica apostólica romana e mais tantos outros tantos adjetivos em português e em latim criados na sua já fervorosa jovem religiosidade. Pouco depois da metade da missa quando ainda havia uma fila para que os fiéis recebessem a hóstia e o conforto de seus pecados, o rapaz reparou em uma garota.  Apesar de que ela não era tão bonita, pode-se logo ir dizendo, a visão do rapaz permaneceu naquela que estava de vestido azul durante alguns segundos que se converteram em eternidades de pensamentos.  As palavras punitivas que tentam disfarçar a obscenidade dos palavrões conseguem ser mais divertidas de se falar do que os próprios nomes proibidos. Logo de início o rapaz se perguntou se estava tendo aqueles pensamentos lascivos e impróprios ou até mesmo alguma visão concreta de atos fornicadores. Seu quase santo fluxo mental logo tratou de desviar aquele rio de pensamentos impulsivos que, insistentemente vinham e voltavam durante as missas, mas que agora, ativados pelas circularidades que aquela cor azul produzia, pareciam querer fixar-se por mais tempo. Quando já estava imaginando a moça católica azulada numa cama, tentou congelar o pensamento fixando em uma fotografia mental dela em que estivesse apenas dormindo. Mas por vezes a visão de uma mulher inerte em sono profundo é mais atraente que qualquer variação pornográfica já feita. Tentou pensar em outros assuntos, voltar a pauta da santa missa, mas seu olho era pescado pelas vestes celestes: seus movimentos leves quando ela ajoelhava e fechava os olhos para as orações, depois sorria para as pessoas, talvez por ter recebido alguma dádiva recente de deus. O mesmo deus infinito e pleno de sabedoria que, na opinião do rapaz, agora agia diretamente e tentava cortar qualquer pensamento obsceno fazendo com que a garota azul erguesse discretamente as pequenas mãos próximo ao nariz e que, com o dedo indicador, remexesse as narinas. Seria alguma espécie de pequeno castigo divino por pensar imoralidades na hora da missa? Mas será que deus, tão ocupado com a administração do universo e ainda por cima com as mais altas questões morais humanas, iria enviar a um bonito nariz feminino uma mera sujeira nasal,  às vezes chamada catarro ou catota ( dependendo da forma líquida ou sólida), para vigiar e punir qualquer impulso sexual? Logo o mesmo ser divino que segundo o padre e as aulas de catecismo tinha enviado seu único filho à terra e este, dentre outros milagres, fez um cego enxergar utilizando de saliva? No fim das contas as questões teológicas e morais sobre secreções do corpo humano iam se distanciando até que não preocupavam mais o rapaz que ,desconcentrado da atividade sacra dominical, estava apaixonado. 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O morcego (II): Crime e Cochilo


A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
- Augusto dos Anjos

O sono dos assassinos é um descanso intrigante. Como alguém conseque dormir depois de matar alguém? Pra invocar esse tipo de sono não deve haver frivolidades tais quais contar carneirinhos. Aqui, os pobres animaizinhos são sacrificados em abatedouros imaginários, peles retiradas, sangue e miolos.

CRIME E COCHILO

As horas de sono desapareceram na vida de Rodion. Trabalhava no setor administrativo de uma empresa que fabricava lindos colchões e travesseiros, mas o cansaço que a falta de sono proporcionava desaguava nas reclamações diárias do seu Chefe Meio Careca quanto à falta de concentração, erros nas tabelas de gastos e a aparência desgastada pelas olheiras. Já no fim do expediente houve uma reunião para definir as novas estratégias de marketing junto a uma palestra motivacional para os funcionários seguida de um plano de propaganda que destacasse que o “o travesseiro é o melhor companheiro para se pensar na vida antes de dormir”.  
Indo pra casa, Rodion pensava em como iria fazer aquela noite para ter sono. Lembrava que metade da sua família ,sob influência de sua mãe, tomava barbitúricos como se fossem jujubas. Sua mãe era especialista em calmantes e sempre quando ligava para o filho passava horas no telefone listando remédios e seus nomes esquisitos. Essa obsessão de sua mãe por pílulas para dormir atormentava a Rodion.  Imaginava que a marcação negra na embalagem destes remédios não era por acaso: os comprimidos eram lutadores de artes marciais de faixa preta que derrubavam impiedosamente quem os enfrentava. Por tais razões Rodion não era adepto a tomar remédios.
Pela manhã, Rodion vai à empresa com muita dor de cabeça e cansado. Dessa forma, houve um festival de erros: entregou as tabelas do mês passado à contabilidade em vez das mais atualizadas; esqueceu de tirar cópia de um documento importante para enviar a um dos principais clientes; derramou café na mesa e esquecia de falar o slogan da empresa quando atendia o telefone.  Como um caçador que vigia sua presa antes de atacar o Chefe Meio Careca observava tudo aquilo até que ao fim do expediente Rodion foi chamado à sala da gerência.
Rodion odiava tanto aquele Chefe Meio Careca a ponto de pedir para que quando fossemos contar a sua história destacássemos a calvície que o superior da empresa tentava esconder. Era uma luta diária de tentar fazer um penteado que pudesse esconder a faixa branca que atravessava os cabelos.  Um conjunto de finos fios negros colocados de lado mostrava uma cômica e inútil resistência capilar a um destino final.  
Naquele dia o Chefe Meio Careca encurralou Rodion: falou de metas na empresa a cumprir, que pagar funcionários era gasto. Em pouco tempo conseguiu falar o par de palavras “custo-benefício” várias vezes! Finalizado os insultos de tipo empresarial, começaram a intromissão e ofensas pessoais. O Chefe Meio Careca reclamava que Rodion deveria esquecer sua ex-esposa pra viver normalmente sua vida, e que até “pagaria” alguma mulheres desde que usasse os colchões da empresa com elas. Soltou um riso tuberculoso e, em seguida, chamou os outros funcionários da empresa e fez um belíssimo discurso sobre “acolchoar as amizades” e abraçou Rodion. 
“O travesseiro é o melhor companheiro pra se pensar na vida antes de dormir”
Os funcionários repetiram em coro a frase. Além de notar mais uma vez o quanto ridículo era esse slogan -, Rodion percebeu que aquilo era na verdade um aviso de quase demissão, um ultimato para que começasse a ter um bom rendimento na empresa.
Quando chegou a noite estava angustiado pois não sabia como iria suportar mais horas de insônia. Quanto mais pensava na falta de dormir, dormir se tornava mais difícil. Lembrou de algumas páginas de um livro de auto-ajuda que tinha comprado há pouco tempo. Na verdade tinha comprado o exemplar por achar que a leitura seria tão monótona que o sono viria fácil. Apesar de não conseguir dormir após ler o livro, Rodion recordou de alguns capítulos que falavam de insônia e mostravam depoimentos de pessoas que conseguiram curar a falta de sono: a maior parte falavam de homens que dormiam após fechar os olhos e projetar sua mente numa praia deserta ou mulheres que repousavam pensando em um campo de flores
Mesmo que parecesse ridículo tal método contra a insônia, Rodion decidiu tentar. Fechou os olhos Rodion deixou sua imaginação “ a deriva” para   enredos para tentar invocar o sono. Tentou projetar sua mente em praias, florestas mas se sentia bloqueado pois sempre os problemas no emprego invadiam suas memórias. Não conseguiu manter  sequência imaginária suficiente pra dormir, pois sempre ecoavam as cobranças do chefe e obrigações da empresa. Pensou no que tinha de fazer no dia seguinte: corrigir os próprios erros nas tabelas, fiscalizar um carregamento de travesseiros, conferir os números dos fornecedores de penas de ganso. Imaginou entrando na empresa, ligando os computadores e começando a fazer os serviços.  
Contudo, Rodion imaginou uma curiosa situação: portando um pequeno machado nas mãos ele entrava na sala do Chefe Meio Careca e educadamente abria a porta, e em seguida o atingia na cabeça exatamente no centro, apressando o serviço que a calvície já estava, gradativamente, fazendo. Talvez um único e firme golpe terminaria o serviço. Uma sensação inexplicável de paz e tranquilidade invadiu a consciência de Rodion e ele rapidamente caiu em sono profundo nos macios travesseiros de ganso da empresa em que trabalhava:
“O travesseiro é o melhor companheiro pra se pensar na morte antes de dormir”

No outro dia tudo ao redor de Rodion fluía suavemente. Uma noite de sono como há tempos não tinha! Sabendo como fazer dormir, bastava apenas treinar e melhorar este seu método sonífero e homicida.
E assim Rodion foi acumulando completas horas de sono e de muitos assassinatos imaginários. Não satisfeito em matar apenas o Chefe Meio Careca , Rodion inventava situações de morte para outras pessoas que não gostava:  imaginou a si mesmo empurrando alguns colegas de trabalho pela varanda do prédio da empresa; cortando a garganta daquela estagiária que a pouco tinha começado e já queria dar ordens na empresa; golpes de porrete na cabeça do sub-chefe que era quase tão intragável como o Meio Careca.  
Nos dias em que não havia ninguém específico para matar Rodion buscava aleatoriamente nas memórias do dia alguma informação aleatória para criar suas cenas. Não sobrava ninguém: o porteiro do prédio em que morava era espancado, uma faca no peito de um homem desconhecido que esbarrou na calçada chegando até mesmo um envenenamento para as crianças do vizinho que ficavam com seus brinquedos barulhentos até tarde da noite. O agradável para Rodion em criar estas situações de morte era a posição de controle total que detinha: não eram sonhos, mas enredos imaginários e conscientes e sangrentos. Era uma realidade virtual em que Rodion era um assassino onipotente!
Um certo dia já encerrando o expediente Rodion recebeu uma ligação no celular de sua mãe. Há tempos que não falava com sua genitora. Aliás, desde que voltara a dormir regularmente sua ligação com ela havia diminuído bastante. Parecia que o assunto da insônia era o ultimo cordão umbilical de Rodion a sua mãe, quando esta vinha com todas aquelas perguntas típicas dos cuidados maternos e principalmente a indicação de remédios para dormir. Como Rodion não era mais insone sentia como se não tivesse mais nada a falar com sua mãe e por isso a conversa foi curta, disse que estava bem e que conseguiu voltar a dormir regularmente.
Naquela noite, assistiu TV e depois foi para sua cama. Como já era ritual se deitou, respirou fundo e começou o processo imaginário de escolha de quem iria assassinar naquele dia para conseguir dormir. Contudo, seus pensamentos o levaram a uma sensação de horror e nojo de si mesmo, pois Rodion tinha imaginado matando sua própria mãe! Tentava escapar daquela cena buscando outras pessoas para matar mas sua mente retornava ao seguinte quadro:  na antiga casa em que moravam quando o pai era vivo,sua mãe de costas na mesa cozinha separando os seus remédios para dormir e Rodion vinha com um pequeno punhal e cravava nos seus ombros e depois na garganta. 
E dessa forma a insônia voltou! A criação dessa cena de matrícídio atormentou Rodion durante todo o dia. Mas a preocupação mais vital era como iria dormir aquela noite já que o a pesada culpa pela ideia do assassinato da mãe tomava de assalto aquela onipotência que Rodion pensava ter do seu método sonífero e homicida.  
Deitando na cama Rodion tentava escapar daquela fotografia da senhora caída ao chão apunhalada pelo filho. Até que no desespero pensou que a única solução era criar situações de uma morte em que não havia imaginado ainda: a sua! Com a mesma engenhosidade que criava as mortes para os outros Rodion imaginava as possibilidades suicidas que iam desde se jogar na grande ponte da cidade ou do prédio da empresa; enforcamento ou um tiro na boca dentro da sala do Chefe Meio Careca e até mesmo um bizarro afogamento em penas de ganso no armazém da fábrica de travesseiros! E assim ia recobrando aos poucos obter a sensação de sono.  Mas não sem antes recorrer a um ou dois comprimidos daqueles que sua mãe havia lhe indicado.