sábado, 11 de abril de 2015

Sérgio Sampaio:o sagrado direito de fracassar e de ironizar o próprio fracasso

     Foi graças a comunidade “Malditos e Marginais da MPB” do já finado Orkut que conheci as músicas do cantor Sérgio Sampaio. Tanto lá, como nas descrições de Wikipedia e de textos espalhados em blogs pela internet é quase consenso de Sampaio enquanto o cantor mais maldito do grupos dos “ malditos” dos anos 70 – a exemplo de Jards Macalé, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Tom Zé e Walter Franco, Belchior, Odair José. Sérgio Sampaio ficou pra posteridade como alguém que ganhou festivais, emplacou o sucesso “ Bloco na Rua” em 1972, mas que foi sendo esquecido nas décadas seguinte diante de uma série de infortúnios, brigas com gravadoras e problemas pessoais.
Convido a refletir sobre a pecha de amaldiçoada sob uma história de vida como a de Sérgio Sampaio. Mas por que maldito? Por ser talentoso e esbarrar em limitações do mercado musical, dificuldades de personalidade ou falta de sorte? Quem nunca não conseguiu superar seus próprios limites? Quem nunca viveu e não aprendeu? nunca provou a farinha do desprezo, da letra de Jards Macalé? Se pararmos pra pensar, será que não somos todos malditos?
    Não podemos deixar de refletir o quão injusto jogar a marca de fracasso individual em muitas pessoas que não se enquadraram, não se adaptaram, ou sequer escolheram nascer e viver em posições socialmente rebaixadas. Mozart, um gênio nato, filho de um burguês que tentava educar o filho as maneiras de ser nobre, fracassou em ser músico autônomo diante de uma sociedade agressivamente desigual entre poderosos membros da corte e marginalizados burgueses no fim do século XVIII. Morreu amargurado e doente, abandonado pelos seus superiores da corte, por um público ouvinte e pelas pessoas que amava, e foi sepultado como indigente. “ Ele simplesmente desistiu” como diz o sociólogo Norbert Elias em um interessante ensaio sobre a biografia de Mozart.
     Diferente de Mozart, Sérgio Sampaio, filho de um fabricante de tamamcos e de uma professora, fracassou mas não desistiu. A visão que faz do próprio fracasso tem muito a nos ensinar. Ironizar, fazer piada com a própria condição de “quase sucesso”; aquele que “poderia ter sido mas não foi” na expressão de um poema de Manuel Bandeira. Nas palavras do próprio Sampaio no jazz “ Que Loucura” do disco Tem de Acontecer: “Saí do palco e fui pra plateia/sai da sala e fui pro porão”  



A posição de marginal também pode ser vista no samba de alegre instrumental “ Ninguem vive por mim”: 


“Fui tratado como um louco, e
enganado feito um bobo
Devorado pelos lobos, derrotado sim
Fui posto de lado e fui um marginal enfim 


    A ironia com o ostracismo também entra na pessimista “ Tem de Acontecer” ao finalizar os versos de uma separação amorosa: 


"Se um vai perderOutro vai ganharÉ assim que eu vejo a vidaE ninguém vai mudarEu daria tudo
Pra não ver você chumbada
Pra não ver você baleada
Pra não ver você arriada
A mulher abandonada
Mas não posso fazer nada
Eu sou (sou só) um compositor popular "  

 



 Talvez nada será mais ilustrativo de uma talentosa homenagem de um artista ao próprio fracasso do que a letra de “ Meu Pobre Blues”, composta por Sampaio e endereçada a um conterrâneo de Cachoeiro do Itapemirim-ES e também cabeludo e gênio musical: Roberto Carlos 

 



 As letras de Sérgio Sampaio podem nos fazer pensar não sobre o extraordinário, mas  sobre o normal, o cotidiano, o falho, o contraditório,  o fracassado, o que tem defeitos, o anônimo , enfim,  o que há de mais banal e que é grande matéria prima das nossas biografias.  Assim também faz de Belchior e sua alucinação é suportar o dia-a-dia. ou as canções cantadas pela cambaleante voz de Raul Seixas nos últimos discos. 

Analisar o que fala um outsider como Sérgio Sampaio pode nos fazer pensar não sobre o extraordinário, mas sobre o normal, o cotidiano, o falho, o contraditório, o fracassado, o limitado, o anônimo , enfim, o que há de mais banal e e cotidiano que é matéria prima das nossas biografias. E não falamos apenas sobre músicas e artistas: precisamos fazer escutar diferentes vozes para, no mínimo, relativizar toda a imposição da ilusão biográfica que insiste em encarcerar nossas vidas em uma cruel e insustentável busca diária por fazer algo grandioso, distinto, épico, extraordinário. Claro que é ótimo e até necessário termos ambições, projetos, sermos estimulados a aprender e tentar melhorar habilidades, trabalhar pela realização de utopias, buscar um mundo mais justo para as próximas gerações etc. Mas isso passa longe de uma agressiva abordagem que passa por vários espaços - jornalismo; escola; universidade; mercado de trabalho; família etc. - e que propõe entregar nosso tempo de vida em cartilhas e fraseologias agressivas que produzem sensações de decepção por não nos enquadrarmos em modelos de sucesso. Temos de reconhecer que podemos enquanto malditos - e sem usar nenhum “apesar” - também sermos felizes. Pelo direito de ” botar o bloco na rua “ , sem encarcerar nossas imperfeitas biografias naquela velha opinião formada sobre tudo que nos torna obsessivos por reconhecimento e sucesso imediato.