Ontem eu vi uma foto do
meu avô em uma praia. Por um movimento de câmera a foto acabou registrando apenas
ele sozinho na diagonal e , mais afastado e prateado pelo sol, o mar. Mesmo
usando um desajeitado calção de banho, o velho mantinha seu olhar característico:
distante, imponente e sério. Contudo, eu nunca liguei a imagem daquele senhor a
praia, nem tampouco ao mar. O habitat do velho era o mato adentro, para além das
cercas, sol, pó,poeira e ventania. Mas tal
qual a bravura de um Santiago diante do grande marlim azul, o velho destrinchava
e feria suas mãos, misturava e rasgava um pequeno e seco pedaço de terra. Boa
parte dessa terra ficava em uma estrada que ,quando era "ano" de chuvas, transformava-se
em rio. Mas mesmo com Sol e chuva na sua estrada, o meu avô estava cultivando e
tentando retirar algo daquele solo. Não
o fazia por necessidade, mas por alguma espécie de paixão pela terra. “Mesmo
sem pegar nenhum peixe, o velho pescador Santiago amava tanto o mar que o
chamava como uma mulher, la mer, que é o nome em espanhol que o chamam quando
realmente lhe querem bem”. Mesmo quase cultivando em cima de rochas, o velho
insistia em capinar, arar e depois plantar algumas sementes pequenas de milho
ou feijão. Chegava uma época que era impossível querer plantar algo se não
tivesse alguma chuva. Como um grande
marlim despedaçado por tubarões a terra jazia despedaçada pela seca. Mas
o que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé? Mesmo quando não conseguia plantar
e fazer crescer algo, o velho ficava
olhando para o horizonte e, quieto, aceitava seu destino. O sol batia na cabeça
do meu avô que ,ao mesmo tempo que sustentava um grande chapéu, servia como
apoio para sonhos e pensamentos que mantinham uma inabalável confiança na vida.
Quase tudo o que nele
existia era velho, quieto e comedido, com exceção de sua ternura. Talvez durante
uma fase mais jovem de sua vida o meu avô queria ser um grande herói das
estradas. Viajou e morou para locais distantes para trabalhar em ofícios
diferentes daquilo que gostava. Subiu novas montanhas tentou diamantes procurar
e sofreu por morar em lugares que eram hostis a pessoas de sua origem. Ficou
desnorteado, como é comum no seu tempo. Mas mesmo vivendo assim ele não
esqueceu de amar, e pelos problemas e dores descobriu o poder da alegria. Penso que foi assim que meu avô aprendeu a ter uma ternura simples e direta em
meio a uma postura que ,por vezes, aparentava ser de rigidez e hostilidade que
só os velhos “ brutos” tem. Apesar de carregar uma grande faca na cintura e de sua
camisa e seu ar forte de caçador o velho gostava de dar risadas altas enquanto
brincava com filhotes de gatos. Saindo da postura de “homem forte” o velho não
abria mão e nem tinha vergonha de abraçar e beijar os netos. Até mesmo odiando
futebol, o velho adorava ficar ao lado dos pequenos na hora dos jogos e ria alto
ao ouvir os guris chamando palavrões que mal sabiam o que significava. Diante
dos netos parecia que meu avô lembrava o riso que tinha e que, ás vezes,
esquecia entre os dentes.
Nas madrugadas, bastava
um gosto de sol na boca da noite para que o velho acordasse e colocasse o pé na
estrada para ir pra sua pequena terra, o seu “roçado”. Foi ali que, por mais que afirmar isso seja temporalmente
absurdo, eu vi o velho me dar adeus anos antes dele realmente se despedir. Ao
longe a cena: parado no meio do roçado, o sol na cabeça, o velho para
de mexer a terra durante alguns segundos e de longe penso ver - se não me enganou a miopia ou reflexo solar – mãos calosas
soltando as ferramentas e me dando um aceno de despedida. As mãos que dizem adeus são pássaros que
vão morrendo lentamente, Quintana acertou. Talvez o velho queria ficar guardado dessa
forma na minha memória: um simples agricultor que não se esvai diante dos
embates e das vicissitudes da vida, que se conformava com os triunfos e
derrotas de forma sábia e tranqüila. Meu avô era, antes de tudo, um forte.
Aviso aos navegantes: quando morremos nos desintegramos espalhamos um big bang de lembranças, situações na memória das pessoas que nos cercavam. Meu Mestre e avô está "disperso" em várias passagens musicais que flutuam ao redor do texto.
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