domingo, 17 de agosto de 2014

Chega de saudade ( Parte 2): Os Terroristas da Saudade



Já não é novidade a notícia de que cientistas criaram uma Máquina da Saudade. De tanto veicular nos jornais as pessoas já sabem como funciona o aparelho: um mecanismo que se conecta ao corpo humano e detecta transmissores da “saudade”, o que permite que a máquina inicie um processo de aceleração e transferência de átomos a longas distâncias. Simples: se você sentir saudade, a máquina lhe transporta aonde quiser.   Mas atenção as seguintes restrições: a máquina apenas ativa se , após conectada a cabeça e também a corrente sanguínea, captar operação cerebral e substâncias ligadas ao sentimento de saudade.  Além das discussões que a nova invenção gerou nas academias intelectuais filosóficas, literárias, sociológicas, lingüísticas, antropológicas e psicanalíticas haviam preocupações relacionadas ao uso comercial e a “popularização” dos serviços da máquina.
Para diminuir o medo de entrar numa cabine, ter conectado a eletrodos na cabeça, receber injeção no braço, e da leve sensação de enjôo após o teletransporte, iniciou-se uma propaganda nas grandes emissoras de comunicação para tornar a Máquina viável para todos. Na verdade, uma rápida análise das empresas patrocinadoras da campanha “pela saudade” podíamos ver que nessa campanha havia claros interesses comerciais.  Enquanto alguns poetas louvavam o fato de uma máquina tão revolucionária ter o seu funcionamento subordinada ao romantismo da saudade, empresários, executivos, acionistas de multinacionais e chefes de estado reclamavam que a oportunidade do teletransporte  facilitaria a suas viagens de negócio, mas precisavam superar as exigências bioquímicas, cerebrais e sentimentais da Máquina. Para isso, já tinha a promessa de grandes laboratórios de farmacêutica que se propuseram a isolar “neurotransmissores da saudade” e assim, fazer uma “injeção” ou, após certo avanço nas pesquisas, uma pílula  que se juntaria as outras tantas que os empresários tomam antes, durante e depois as suas seguidas viagens e conexões de avião.
Porém, a mídia e as grandes multinacionais e os líderes mundiais começaram a se preocupar com outro problema. No momento havia apenas quatro “Máquinas da Saudade” no mundo.  Duas dessas estavam em posse de grandes Estados nação, que tinham seus governos guiados por corporações de grande volume de capital que financiavam, eleição após eleição, seja conservadores ou progressistas,  as campanhas presidenciais.  Uma máquina ficou com a instituição das Nações Unidas – na verdade era uma máquina reserva, deveria ficar guardada pra usos de emergência. A quarta máquina era o problema pois havia sido roubada de uma base militar e não sabia exato o seu paradeiro.     
Uma rápida pesquisa em vídeos que circulavam pela internet encontramos um vídeo de um grupo de pessoas que afirmam ter roubado essa quarta Máquina.  Já com um número considerável de visualizações, a gravação mostrava apenas uma mulher encapuzada que dizia ser a “própria Saudade” e lia o seguinte texto:
 1) Chega de Saudade: a saudade é uma angústia de todo ser humano, portanto, deve ser elevada a categoria de direito universal suprir as necessidades da saudade. Se todos sentem saudade, não faz sentido o uso da Máquina da Saudade estar restrita a alguns grupos privilegiados. É urgente popularizar a Máquina para todas as pessoas, independente de nacionalidade, classe social, idioma, religião, cor ou orientação sexual.
2) Chega de Saudade: A humanidade criou a escrita, o telégrafo, o telefone, a viagem de avião, a internet. Essas invenções deveriam servir para diminuir tempo e distância, nos tornar mais próximos, diminuindo ou eliminando obstáculos para os encontros entre humanos. Em resumo: deveriam diminuir a saudade.    Contudo o que vemos hoje é diferente: as pessoas viajam tanto de avião que esqueceram a magia que é estar voando no céu ” e apenas reclamam dos serviços de bordo, da demora das empresas, estão mergulhados nas obrigações dos seus empregos de cumprir horários.  Quanto a internet, somos escravizados pelos e-mails, redes sociais, postagens de fotos e aplicativos no celular que nos avisam a toda hora nossos compromissos de trabalho e com o  fingimento de uma imagem que nós não somos. A saudade é o motor das grandes invenções tecnológicas da humanidade. Já que temos consciência disso não podemos permitir que aconteça com a Máquina da Saudade a deturpação que já aconteceu com o avião e com a internet.”
3)  Chega de Saudade: Buscaremos a saudade no mais cotidiano das pessoas. A música é a grande força motora da saudade.  Nos downloads de músicas: os sambas nostálgicos, boleros melancólicos,  os fados, canções românticas das mais cafonas, das baladas dos rocks. Estamos atentos  as postagens em redes sociais, ligações de celular e nas conversas mais cotidianas. Se preciso, bateremos de porta em porta. Estamos disfarçados de padres, psicólogos, advogados, músicos, vendedores de seguro. Nosso objetivo é fazer com que os mais necessitados, tanto de dinheiro como da distância das pessoas queridas, tenham garantida uma viagem gratuita dentro da Máquina da Saudade.

Foram estas  reivindicações que, em uma época passada “pré- Máquina da Saudade” soariam como piadas e resmungos de qualquer adolescente sonhador, começaram a preocupar a política mundial.
A Grande Mídia  logo criou um nome pejorativo para os ladrões da máquina: eram os “ Terroristas da Saudade”. Esse nome foi alvo de grandes contorcionismos para os jornais. Primeiro, ligaram os Terroristas da Saudade – um nome realmente horrível e de mal gosto -  a alguma suposta ação comercial das decadentes empresas do mercado fonográfico .  Jornalistas diziam que era tudo uma farsa sobre o roubo da máquina: na verdade era uma ação comercial das gravadoras musicais, um último suspiro de um mercado em decadência. Foram mobilizados produtores e críticos para mostrar que, a notícia de roubo da máquina era parte de uma farsa, um viral, um último suspiro das gravadoras musicais em falência, para anunciar “ Terroristas da Saudade” como uma nova banda de “jovens que iriam revolucionar a música pop” .
O argumento religioso também foi mobilizado pela Mídia para criticar os assim proclamados “ Terroristas da Saudade”. Se dizia que eram um grupo separatista que agia por meio de luta armada e intimidações.  Boatos diziam que os Terroristas da Saudade eram uma perigosa comunidade religiosa liderada por charlatões, pastores, monges, espíritas e padres fanáticos que “se diziam anjos” e iriam de casa em casa fazer falsas promessas de que a Máquina poderia suprir a saudade dos seus parentes já falecidos. Essa nova religião de uma deusa chamada “Saudade” realizaria o milagre de órfãos e viúvas, através da Máquina roubada que seria aperfeiçoada para alcançar o paraíso, purgatório, inferno ou qualquer outro local que a fé humana criou para despejar a lembrança  dos seus  mortos.

. Não se sabe se por sucesso ou medo de um apoio da população as investidas dos Terroristas da Saudade os governos começaram a pensar em uma democratização da Máquina da Saudade . O que seria o direito de todo cidadão para suprir a sua saudade? Todo cidadão, pagador de impostos, teria direito a uma “cota de saudade” viabilizada pelo governo?  Podemos mesurar saudade em impostos, financiamentos de créditos, bolsas de estudo, cotas, subsídios e cortes de gastos? Como investir nas políticas de saudade como um atrativo de votos nas campanhas eleitorais? Através dessas perguntas digladiavam deputados, senadores, governadores e presidentes de vários países. Empresários diziam que “por ser um sentimento importante, a saudade poderia ser aproveitada como valor de mercado”. O mais importante para eles era que dessem prosseguimento as pesquisas para tornar a Máquina utilizável para fins comerciais.   “Se os pobres querem usar a Máquina da Saudade que trabalhem e busquem pagar o teletransporte com seus próprios méritos.  É melhor ensinar ter a saudade do que dar assim de graça”. Eis o jargão de políticos aliados dos analistas de mercado financeiro.  Já os filhos destes políticos que estudavam em grandes escolas de arte se diziam simpatizantes das transgressões dos Terroristas da Saudade.  Argumentavam que” ter saudade” era um aspecto esteticamente interessante da condição universal humana. Porém, esses mesmos artistas e intelectuais afirmavam que os pobres não tinha uma saudade esteticamente elaborada para usufruir da Máquina da Saudade. Sobre esse tema, um estudo publicado por um grupo de sociólogos, conclui com os seguintes trechos: “as pessoas pobres sentem  melancolias, tristezas e até sentimentos parecidos com uma nostalgia mas com certeza não sentem saudade:  isso exige uma senso estético de nostalgia bem elaborado” (p.56) e, em seguida diz que “o problema da saudade entre as classes mais humildes eram as músicas de baixa qualidade que os pobres ouviam, ao sentir saudade” (p.64). A partir dos resultados desses estudos – financiados integralmente pelas empresas interessadas na Saudade - os governos já preparavam campanhas educativas e a polícia para reprimir e até mesmo eliminar qualquer manifestação musical nos bairros e cidades mais pobres.  

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